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segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Só quem morre pode dizer.

Luz de serviço acesa. O público terminou de se acomodar no conforto das poltronas. O ator que interpreta o personagem que morre (primeiro) entra na área esférica que é o palco. Posiciona-se no centro do palco e mira os espectadores. Gira em seu próprio eixo para tentar passar os olhos por todos e todas. Depois ele estaca. E confessa ao público ali presente:

Quem trabalha com teatro sempre vai ouvir alguém dizer que por estar num palco como este, em formato esférico, será preciso dar conta de todos os olhos que o miram por todos os lados. Eu sei disso. Já me disseram. Mas eu não preciso mirar todos os olhos porque mesmo sem vê-los eu sei que vocês podem me ver. Eu sinto. E tudo isso eu apenas sei porque eu estou morto. Essa é a coisa mais linda de todas. A coisa mais linda que o trabalho com o teatro me permitiu; aprender a morrer. Eu estou morto agora, mas mesmo assim, estou aqui conversando com vocês. Isso não é necessariamente magia ou coisa incapaz de explicar: é só uma possibilidade. É um desejo e como todo desejo: isto aqui é só uma imagem. Morto, tal como eu estou, eu posso ver além das paredes. Ver o que está aí dentro, aqui dentro e através dos seus olhos, e dos seus, eu vejo através da sua pele e da sua dúvida também. Quando alguém morre, o corpo morto se desmancha em matéria e abraça o mundo inteiro, porém, não com braços nem mais com mãos, mas tão somente com abraço-partícula. Partícula que de tão pequena só pode morar no vento. Chamamos de vento esse abraço imenso que costura um mundo. Dar abraço-partícula é muito mais inteiro e aconchegante do que se poderia prever. Eu abraço vocês agora. Eu abraço esta cidade inteira. Eu abraço o nosso país e todas as coisas sem nome que ainda não tivemos condição de descobrir. Esta peça deseja abraçar muita coisa, tocar em muito assunto, em muito sentimento. Deseja acessar arrepios imensos, injustiças tornadas oficiais e sonhos interrompidos, intensos descontentamentos. Eu só estou morto para conseguir nos guiar por todos esses lugares, antes que eu venha a morrer. Por conta disso, eu sou alguém que narra a dor. Mortos, de verdade, a gente veria tudo isso mas não poderia contar a ninguém o que descobriu. Não poderíamos compartilhar a beleza que é morrer, que é ver por todos os lados a vida sem segredos. Por isso eu amo o meu trabalho. Porque quem morre - assim como eu morri - vira uma espécie de Deus. Um pássaro, por exemplo, ele é livre, mas preso dentro da prisão do ar. O nosso espírito, por sua vez, ele também é livre, mas é livre preso na prisão do corpo. Só que livre, bem livre mesmo, é somente quando se está morto. Como eu agora. Eu morri. E por ser alguém morto, eu não precisei mais me preocupar com tempo nem relógio, nem com casa propriedade chão nem teto, eu perdi todo e qualquer limite e passei a viver de novo enquanto acontecimento (que só não é eterno porque o tempo já nem me existe mais). Eu estou aqui com vocês, vocês me veem? Eu estou morto e só por isso posso contar a vocês a história de algumas vidas, como foi a minha, como ainda é a de vocês, como foram outras que já passaram por aqui e que ainda hoje sobrevivem acariciadas em morte. Acompanhem-me, por favor. Eu lhes peço. Tudo isso aqui é só um desejo. É só um desejo.

O ator se deita ao chão. Os refletores se acendem. Entram os outros atores e a peça começa (lá num instante daquele tempo ficcional em que ele - o personagem que vai morrer - já tinha morrido e fazia imensa falta aos outros).